domingo, 30 de janeiro de 2011

Um conto para pessoas pacientes e drogadas

Loly vivia em Paris desde que fugira de casa no dia de seu aniversário de dezoito anos, e vinha sobrevivendo graças ao seu trabalho como cantora no bar de Rogérie, um homem de quarenta anos que gostava de sua voz e a aceitara apesar de não saber tocar nenhum instrumento e ele ter de contratar alguém para tocar violão ou piano ou gaita. Até encontrar-se o perfeito tocador de instrumento para fazer música nas noites parisienses, foram muitos que Rogérie teve de testar, fazendo Loly cantar horas a fio durante a manhã, quando o bar ainda estava fechado. Alguns traziam violas desafinadas, outros chegavam dizendo que sabiam tocar piano mais piano era muito grande e não podiam trazer e outros ainda traziam panelas e começavam a cantar e a dançar. Rogérie ficou fulo, fulo da vida, pensou até em desistir. Mas então adentrou pela porta do bar um homem de chapéu branco, carregava um violão de madeira, disse “vim para o emprego de tocador de viola” e então sentou-se para tocar ao lado de Loly. Perguntou que música tocariam, disseram qualquer uma, ele então começou a tocar qualquer uma, na verdade nem Rogérie nem Loly a conheciam, mas era bonita, muito mágica e bela, contratado na hora, pensara o dono do bar, que logo em seguida estava apertando a mão do moço. “Começas hoje as nove” disse ele, e o moço se foi com sua viola. “Ele é muito bom” disse Loly com sua voz baixa de cantora tímida e de origem pobre, de onde viera não tinha essas coisas de cantar pra outras pessoas, era só pra família mesmo e olhe lá, e agora lá estava ela cantando em bares, quase sentia-se famosa. Naquele instante, Rogérie a mandou embora, dizendo para voltar mais a noitinha, na hora de o bar abrir, e desapareceu em uma porta dos fundos.
Loly viu-se novamente sozinha em Paris, e saiu pela portinhola da frente, sentindo o vento da alameda batendo contra seu rosto limpo e fresco que poderia ter sido jogado contra um pé de limão naquele exato momento, e começou a pensar para onde ir. As manhãs e tardes eram, às vezes, as partes do dia que menos gostava e, outras vezes, que mais gostava, por que ás vezes tinha coisas para fazer e outras não. Hoje ela não sabia o que fazer. Pensou em ir ao sebo de Marie, que era uma cega que vendia livros velhos há mais de vinte anos em uma ruela próxima ao Rulét, e que nunca notava quando Loly saía da pequena loja sem pagar. Mas hoje não era isso que era queria fazer. Na verdade, não era hoje um dia em que sabia o que era de seu anseio, como naquela quando ouvia a música Let It Be, cantada com aquele coro ao fundo, aquele sentimento nostálgico que tomava conta dela e a levava para um lugar sem rumo e sem futuro, ao mesmo tempo belo e horrível, agradável e desagradável; era lá que sentia-se agora. Então, subitamente encontrou-se correndo pela alameda, esbarrando pelas pessoas que a olhavam com estranha estranheza, perguntando-se, inquirindo-se à uma ambulância, algumas nem a percebiam, mas Loly sentia aquela pressão abstrusa do céu que lembrava um aquário e das músicas distintas que soavam das caixas de som das lojas em promoção, das vozes das ditas-cujas pessoas com suas vidas ordinárias em caminhos definidos. Ela sentia e não podia aguentar e por isso corria em rumo até suas pernas começarem a doer, até o suor escorrer por suas costas.
Até ela parar.
Ela não sabia aonde estava.
Era uma praça, isso ela sabia, mas era uma praça diferente, uma praça vazia, aonde as árvores eram brancas e feitas de algodão e Loly tinha absoluta certeza de que nunca havia visto aquele lugar em Paris. Em seus vinte anos de vida, nunca havia visto árvores de algodão. Os sons dos carros haviam sumido, os sons da vozes, dos cães, dos microfones, das nuvens, o som do empíreo, aquele maldito aquário que a cobria e a prendia como um rato de laboratório havia a soltado e ela podia olhar para cima livremente simples tão-somente como um corvo pronto para comer um ser em decomposição. Abancou a caminhar pela estranha praça, e notou que ali realmente não havia ninguém, não havia sociedade, mas havia, subitamente, um fraco som vindo de um lugar muito distante, das árvores brancas de algodão. Era uma música, ela reconhecia a música. Começou a andar rápido, seguindo o som, e logo o som tornou-se nítido, haviam mais pessoas ali, haviam muitas, muitas pessoas, era outro lugar; não era Paris, havia cheiro de tabaco e anos 60.
- Olhem! Ela chegou!
Assim que Loly fez a curva em um caminho de ladrilhos, as vozes começaram a ecoar, como se ela fosse uma estrela de cinema, e rostos conhecidos viraram os olhos para seu corpo.
- Oh, meu Deus, é Loly! – alguém exclamou-lhe.
- Venha cá, meu amor, venha tocar conosco.
Ela se perguntou quem eram aquelas pessoas no meio daquela praça de árvores de algodão, e notou que a maioria vestia roupas estranhas, calças largas, óculos redondos, fumavam umas coisas fedorentas, usavam uns chapéus enormes e seus rostos eram extremamente familiares.
Mas ela tinha certeza de que não os conhecia pessoalmente.
- John? – ela olhou para a direção dessa voz e viu uma mulher japonesa magrela. – John? – ela chamava, procurando por esse John. Então, ela parou em frente a Loly e perguntou se ela tinha visto um cara com óculos redondos e cabelo comprido e cara de hippie. Ela que respondeu que todo mundo ali parecia ter essa cara e a mulher saiu irritada, inquirindo outras pessoas.
Tudo estava nebuloso na cabeça drogada de Loly. Ela sentia-se drogada, completamente drogada e doidona. Mas ela não se lembrava de ter tomado nada ultimamente, o que era muito estranho, já que o que estava vendo era realmente muita viagem. Porra, ela pensou, olhando em volta, estou nos anos 60 em uma praça com árvores de nuvens. Mesmo assim, tinha certeza de que não havia cheirado nem nada.
- Hey, quero te apresentar uma pessoa. – uma voz soou atrás dela, e então sentiu um dedo cutucando seu ombro. Virou-se e viu um homem negro com uma guitarra ao contrário pendurada em frente ao peito. Ele sorriu para ela, vestido com sua calça aberta em baixo e sua camiseta colorida com símbolos da paz. – Sou Jimmi. – ele estendeu-lhe a mão repleta de anéis.
- Oi. Sou Loly.
- Eu sei.
- Como você...
- Não importa. – ele interrompeu, puxando seu braço. - Tenho muita coisa para te mostrar, já que sou o encarregado de hoje.
Ela ficou sem fala, então foi puxada pela multidão conhecida e desconhecida, indo para algum lugar.
- Desculpe, mas... – ela começou, olhando bem para o rosto do tal Jimmi. – eu te conheço de algum lugar?
Ele riu bem alto, e sua voz rouca ecoou em seus ouvidos como se tudo aquilo não passasse de um sonho.
- Claro que não! Eu morri em 1970, quando você não era nem nascida.
Loly achou essa resposta bastante razoável e continuou a ser puxada para qualquer lugar por Jimmi e sua guitarra ao contrário.

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