quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Pedro quer fugir

É estranho. Tudo é estranho, como você disse agora pouco em nossa breve conversa; o mundo é estranho, menino, é feio, menino...
A voz de Kurt Cobain soa em meus ouvidos, alta e cortante, ele grita toda sua revolta, lê meus pensamentos, imagino-o fumando seu cigarro e segurando o microfone com toda sua alma. Ele canta com sua alma. Ele está morto.
Estou em minha cama de solteiro, em meu quarto, em minha casa, casa de meus pais.
Faz menos de meia hora que você fez uma pergunta para mim. Não foi uma pergunta qualquer afinal, tal questionamento provocou súbito movimento de neurônios em meu cérebro jovem, um movimento contínuo e rápido. A pergunta fora:

JUJU diz:
Vamos fugir?

E então eu me desconectei. Fiz isso para poder deitar-me em minha cama quente e olhar para o teto bege e simplesmente pensar ao som de Nirvana e toda sua rebeldia perdida. Por que a voz cansada do vocalista morto que nunca voltará para me bater me ajuda a chorar por tudo que não vou fazer e não tenho coragem. Por exemplo: fugir com você, mesmo te amando, mesmo sentindo saudades, mesmo não te vendo há mais de quatro meses.
Não sei como estou aguentando.

PedrO diz:
Não posso deixar minha família agra.

JUJU diz:
...

PedrO diz:
Desde o acidente, sabe...:S.

O refrão não semelha ao céu, o céu não semelha ao campo, as fadas do campo não existem minha pequena cinderela. Uma vez a pequena Maria de sete anos dissera-me que as fadas existiam em seu jardim, que conversava com elas, brincava com suas asas rosadas, verdes ou amarelas, e elas soltavam pós dourados. Eu duvidava, ria de Maria, mas hoje Maria não está aqui.
E hoje eu vejo as fadas de asas rosadas. E converso com elas.
Tell me where did you sleep last night?
In the past…

Não aguento maios ouvir tais versos. Preciso desligar o repeat do rádio, preciso ouvir outra música, quem sabe Elis, qualquer coisa menos essa voz deprimente e cansada e bela e autêntica...
É demais para mim, é demais para você.

JUJU diz:
boa noite. dorme bem.

PedrO diz:
Vc também.


FIM.

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Festas e Pessoas Inumanas



Nada era novo para ela. Todos aqueles rostos, mesmo que pertencessem a pessoas novas, eram idênticos a todos os outros que já vira. E a música, pulsante, controladora, contínua, também não modificara. Ela marchou através da pista de dança, sufocada, desviando-se de esbarrões. Apenas uma pergunta pairava em sua mente:
O que estou fazendo aqui?
Para que, exatamente, servia aquele vestido curto de tecido caro, que brilhava sob as luzes coloridas? Por que, desprovidamente de sentido, ela bebia um drinque atrás do outro como se quisesse afogar-se neles?
A jovem não fazia ideia de nada disso.
A pista de dança revogou e ela chegou até a sacada do clube noturno. Seus amigos estavam provavelmente dançando, sem dar-se falta dela, preocupados de mais em agarrar-se com alguém no banheiro.
Seus pés doíam. Seu cabelo estava suado. Sua visão girava levemente por causa do álcool.
Apoiou-se no parapeito, olhando o enorme jardim que estendia-se à sua frente como um horizonte finito. A madrugada era friorenta, nebulosa, porém estrelada.
- O que estou fazendo aqui? – murmurou para si mesma, desejando que falar em voz alta a ajudasse a descobrir a resposta. Não, nada ajudaria. Não existia resposta para tal pergunta.
Olhou para trás, por sobre os ombros descobertos, e viu novamente todos aqueles corpos dançando, agarrados, suados, falsamente felizes e completamente perdidos em seus próprios mundos fechados.
Escuros. Aqueles mundos eram tão escuros, tão bem chaveados que ninguém poderia sair.
Desviou o olhar. Aquela festa só a deixava triste, e precisava afastar-se. Caminhou até a escada que descia até o gramado do jardim, deixando o clube sustentado por toras de madeiras para trás.
À medida que andava, os sons da sociedade diminuíam, aliviando seus ouvidos. As árvores pequenas e bem cortadas vigiavam-na de perto, fazendo-lhe companhia. Ela sentiu aspiração de ser uma árvore, de não precisar pensar, de não precisar viver a vida turbulenta de um humano. Por que ser uma humana, uma jovem, um ser cheio de emoções ridículas e pensamentos recicláveis era um inferno, contudo, ser uma árvore, uma planta, parecia tão simples e inútil que era quase aliviante olhá-las, tocar em suas folhas imóveis.
A garota continuou a andar pelo caminho mal iluminado, afastando-se cada vez mais da música agitada, de uma batida que lembrava uma estaca psicodélica sendo socada contra a cabeça ensangüentada de um idoso. Bom, não exatamente assim, mas essa fora a imagem que lhe viera à mente: A de um idoso sangrento. Ela quase riu. Quase. Por que riria, afinal? Riria por que aquilo fora engraçado? Riria por que era sarcástica de mais para admitir o fato de que nada naquela porcaria toda tinha alguma graça real? Riria por que na verdade estava morta, por que estava em coma, por que tudo aquilo era um sonho?
Não, ela não riria, por que aquilo era sua vida.
Aquilo. Por que logo aquilo?
Seu reflexo no espelho, logo antes no banheiro lotado, era ela mesma. A mesma de sempre, um sempre que não possuía nem começo nem fim, muito menos um presente, porém que ela era obrigada a viver e viver e viver infinitamente, sem um minuto de descanso, sem um minuto sem pensar. Deus, por que a obrigavam a pensar continuamente? Seriam os superiores deuses ou astros tão cruéis a ponto de dar-lhe uma mente pensante e fazê-la com que pense sobre tudo, todo o tempo, lastimando-se sem direção e sem saber o que fazer naquele lugar.
Por que ela sempre soube que aquele não era seu lugar.

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Olhar nos olhos


Olhar nos olhos das pessoas alheias é uma arte infrequente. É como um pintor magnifico que pinta quadros maravilhosos de se olhar, é como um pianista, é como um escritor. Porém a arte de olhar nos olhos não se constrói e não se pratica. Ninguém faz curso, e muitos nem sabem que essa arte existe, pois ela é tão-somente fina, como a brisa que passa despercebida pela maioria dos ditos-cujos que andam pelas ruas poeirentas das amplas e acanhadas cidades do mundo. Dois amantes olham-se nos olhos e fogos acaloram-se magicamente, enquanto dois psicopatas olham-se com ódio e as luzes acendem-se mais e mais e o mundo se ilumina com o ódio. É como uma fogueira, o ódio, que pode trazer tudo, menos felicidade.
Ou pode, às vezes, na maioria, às vezes, nas revoluções, nas simples ações do dia a dia.
Olhar nos olhos revela o que alguém é. Revela os anseios. Olhar nos olhos revela se a já amou por atravessar pontes da verdade, se já perdeu pessoas reais e irreais, se já sofreu por órgãos que sangram, se tem amor por si mesma e se tem objetivos que não provem de lugar nenhum de seu próprio órgão central nervoso, ou se já percebeu que nada disso importa.
Ou se sabe que significamos vivos.
Que temos vontades não realizadas. Que a sociedade nos prende. Que tudo nos segura, que seria melhor não termos nada pra podermos viver, que seria melhor ser infelizes para podermos ter, que seria pior ter para não ter, os paradoxos do viver, os infelizes dominando o mundo, etc, etc.
Eles sabem, os que têm a arte no sangue, a arte de olhar nos olhos.
Eles sabem tudo sobre todos, pelo menos de todos os olhos que já passaram pelos seus, até mesmo dos cegos que possuem o dom. Os cegos que possuem o dom veem com o espectro, assim como os que enxergam, estes veem também com a alma, nunca se vê os olhos com os olhos. A alma que vê tudo por dentro. Os olhos são nada além de nada.
Deixar ir, deixar partir quem se foi, que quis ir. Parece fácil falar, mas quando a vida nos possui da forma que um urso abocanha sua presa, as coisas ficam piores – o sentido que os filósofos buscam já não serve mais. Não queremos mais busca-los, não queremos mais viver, queremos a futilidade e nada mais além disso, por que os quem possuem o dom parecem querer fugir de nos o tempo todo. Perguntando-nos o tempo todo “aonde estão vocês para me olhar nos olhos e dizer o que sinto?” Aonde, aonde, aonde?
E o desespero nos consome nesses momentos.
É impossível deixar ir aquilo que nos pertencera antes de tudo acontecer, antes da monopolização de ideias, antes de todas as pessoas aprenderem a pensar, antes de todos saberem chorar, antes de todo mundo ouvir a mesma nota mentor.
Tudo piorou.
O mundo morreu.
E eu também. Nós.

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010



A felicidade que vive em algum lugar inalcançável de nossas mentes idiotas e infantis, que tem tanto para aprender que até perdemos a conta de quantos segundos corroemos em frente a janela sonhando com o futuro, lagrimando pelo passado e convencionando o presente. E mesmo quando já deveríamos estar no momento pleno, deitados na colina, contemplando a lua, ao lado da pessoa amada e nossos pelos se arrepiam magicamente, mesmo assim temos algo para concertar. Algo sempre está errado, algo em nossa vida sempre caminha ao contrário, sempre rotineiro e interligado a outra pessoa que tentamos esquecer e que não entende nossas falas...
Quando dizemos que algo não faz sentido, ninguem entende.
Por que ninguém entende? Somos nós os loucos? Ou são eles os burros? Quem deve ser internado? Eles ou nós? Quem são eles e quem somos nos?
Deus, voce está aí para me responder, seu filho da puta?



"God is a concept
By which we measure our pain"
“God” by John Lennon.
...
- Quando estou com você, sou uma pessoa melhor.
...
- E?
- E quando estou só, não sou nada. Sou um ser sem alma, sou um animal. Eu prefiro estar com você.
...
- Podemos ficar aqui?
...
- Sim. Nós podemos, mas só por enquanto.
Suspiros.
- Depois teremos que sair e enfrentar a vida.

domingo, 12 de dezembro de 2010


Correr ao vento
Está sempre sem tempo,
Essa mulher.
Sempre tão perdida
Naquele mundinho, naquele livro de capa mole
Naquele céu sem estrelas
Naquela lua sem cor.

Mas o que não demonstra,
Um sentimento ruim
De sonhar, de querer viver,
Prevalece.
A mulher quer mais, não quer ficar ali
Quer ir embora
Quer fugir.

Ela sabe que quer,
Porém aonde encontrar coragem
Isso ela não sabe.
Não há amor por aqui
Não há vida, não há ódio.
Não quer aqui, quer lá, quer longe
Aqui nunca será.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010


Esconder o rosto sob livros não resolve, mas ajuda.
Sem batimentos, sem coração, um coração que bate rápido de mais, de um modo que as batidas nem são mais sentidas por mim. Estou morrendo? Minha visão continua clara, respiro normalmente, mas algo mudou dentro de mim.
Estou sentada no banco de trás de um taxi, indo em direção ao meu apartamento moribundo no centro de Londres. Minha vida está girando ao meu redor, lembranças voando, sinto frio agora. O taxi pára. Entrego o dinheiro ao motorista; não consigo agradecer, minha garganta está entorpecida. Piso no asfalto com meu sapato de salto, tomando cuidado para que meu vestido curto não deixe minha calcinha aparecer.
O que fazer agora? Dormir? Ver TV? Ler? Ligar pra alguém? Cheirar? Dormir, enfim. Mas eu não quero dormir, não sinto sono, apenas olhos cansados; porém tenho medo, tenho medo de fechá-los. Não quero entrar em casa. O porteiro me cumprimenta, estou com as chaves na mão, vou entrar ou não? Não, não vou entrar. Viro para a esquerda, ando rapidamente, guardo as chaves na bolsa.
A rua está praticamente deserta, afinal são cinco e meia da manha. O frio é insuportável, estou bêbada, preciso de um cigarro.
Preciso gritar... Sinto angústia, sinto dor, olho para o céu. Meu Deus, o céu é escuro, sempre e eternamente escuro, as estrelas nem são o que parecem, elas não são pontinhos brancos. São crateras gigantescas e grotescas, perdidas, mortas, frias ou quentes ou qualquer porra parecida. Não consigo tirar meus olhos do céu. Ele é tão infinito, tão horrível de se olhar, por que parece que não há mais nada. Sinto-me pequena, minúscula, insignificante. Apenas mais uma. Apenas mais uma pra morrer.
Desejo estar morta. Agora, agora mesmo. Não tenho coragem para me matar, sou covarde, sou ridícula, só sei esperar e sofrer, continuar nessa porra de mundo.
Olho para o chão. Não consigo chorar, não existem lágrimas dentro de mim. Meus olhos nunca molharam-se, nunca transbordaram emoção neste meu corpo frio. Mas eu desejo chorar agora, eu preciso, na verdade. Vou explodir se não o fizer.
Olho para frente, para o fim da rua, para o horizonte. Meu futuro me espera, espera que eu faça as coisas certas. Eu quero que coisas boas aconteçam, porém o futuro é só mais porra pra acontecer, não é futuro, é só tempo na frente, por que passado é tempo atrás e presente é tempo em cima. Tenho tanto medo de tudo que pode acontecer, de quem vai morrer, dos amores que não vou viver, da dor que vou sentir, de tudo, das despedidas. Não quero me despedir, não quero nunca mais abraçar alguém, não quero me apegar, não quero ser beijada, não quero querer beijar.
“Deus não existe. Deus? Você está aí?”, disse-me ele, certa vez, sarcasticamente.
Minhas pernas fraquejam, caio no chão, de joelhos. Grito, grito com toda a minha força, por que a rua está deserta, o mundo também, meu coração está deserto e frio. Não sei mais o que pensar, muito menos o que esperar dessa maldita depressão, desse sangue todo, dessa solidão. Não faz sentido, afinal. Nada, ninguém, nada, nada, nada, morte, sempre dói. Tudo dói. Sempre. Nunca acaba a angústia, nunca acabam as mortes, nunca apaga-se o fogo.
“......................................................”
“Pensamentos em branco, girando, girando, não fazem sentido algum.”
“!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!”
A dor está dentro de mim, lá no fundo, nada pode tirá-la. Tento fazê-la desaparecer, caída de joelhos nesse beco deserto, após uma festa em uma maldita boate, após beber litros de vodka, cheirar pó, dar pra uns cinco canalhas que me deram cem paus cada, estou chorando. Derramando minhas primeiras lágrimas por esta vida miserável que vivi, as lágrimas são salgadas, nunca soube disso, por que nunca chorei. Elas encostam em meus lábios manchados de batom vermelho, mas eu sinto o gosto. É um gosto bom, pena que demorei tanto para prová-los.
Chorar é aliviante, é libertador, porém a dor continua aqui dentro, no meu estômago, no meu coração, na minha cabeça, em tudo.

Hoje é meu aniversario de 28 anos e, enquanto olho para trás, vejo que nada valeu à pena. Nada foi importante, eu não vivi nada de verdade. Eu só presenciei minha própria vida, só olhei para ela. E agora estou aqui. Sou uma puta de boate, uma alcoólatra, uma viciada em pó que mora num beco de Londres e que não ama ninguém, não é amada por ninguém. A mãe morreu, o pai foi preso por estupro, não tem irmãos, não tem parentes, se tiver são uns merdas também.
E não tem solução. A felicidade não existe, se os ricos também são infelizes e miseráveis, então não pode existir, nunca. Muito menos pra uma putinha como eu ou para qualquer outro miserável como eu. Não procuro mais por ela, não quero mais amar ou casar, só quero foder a vida de todo mundo e a minha também.
Todo dia é igual, os que passaram e os que estão por vir. Acordo, cheiro, bebo, um canalha velho e rico me paga cem pau pra eu dar pra ele, volto pra casa, cheiro mais um pouco, vou pra boate, faturo uns quinhentos pau, seiscentos, quem sabe. Volto pra casa, xingo essa merda de vida, assisto TV, durmo, não tenho ninguém pra ligar.
Nem tenho a coragem de me matar.

Grito mais uma vez, caída no meio da rua, e percebo que começou a chover. Uma chuva fraca, fria, gélida e cruel. É o mundo que é cruel.O mundo é cruel, os privilegiados são cruéis, por que passam na rua, vêem um maldito de um mendigo, um ser humano igualzinho a eles, e continuam caminhando. Ou olham pras putas na esquina com nojo, ou vão á uma porra de uma boate e pagam cem paus por uma que seja um pouco mais bonitinha, mais cheirosinha, por que tem um agente do cacete e um salário bom pra caralho. E falam que puta ganha bem, que dá pra sustentar uma família, dá pra viver no luxo. Bando de filho da puta, isso sim.
Deus me castigará, o Diabo me abraçará. “Não há desculpa para os seus pecados.”, Deus me dirá, no portão do paraíso. “Mas, Senhor, eu não tive oportunidades.”, implorarei, já chorando. “Todos tem uma chance, todas as almas, sem exceção.”, ele dirá sabiamente, por que é um ser justo. Eu então serei arrastada para baixo, para o inferno, para o breu escuro, para a dor, para a terra cem vezes pior. Lá, encontrarei o Diabo. Ele virá até mim, sorrindo. “Não se preocupe, aqui é meio ruim, mas você se acostuma.”, dirá ele, abraçando-me, entendendo-me. “Todos que conhece estarão aqui um dia. Todos os humanos que morreram estão aqui, sabia?”, ele sussurrará em meu ouvido. “Como assim?”, perguntarei, confusa. “Não há humano que não tenha pecado, filha. Eu sou humano. Deus não é.”
Saio de meus devaneios, de minhas visões. Volto para a rua escura e para a chuva, agora forte, machuca meu rosto, não consigo manter meus olhos abertos. Tenho que ir embora. Ergo-me com esforço, mal sentindo meu próprio corpo, e vou andando de volta para minha rua. Viro a esquina, vejo meu prédio. O porteiro me cumprimenta novamente, porém desta vez com uma expressão preocupada. Entro, subo as escadas, abro a porta, entro em casa, deito no sofá de dois lugares e fecho os olhos. Preciso de pó. Abro a gaveta da cozinha, lá tem cinco gramas em um saquinho. Faço duas fileiras na mesa da cozinha. Preciso de um canudo, rápido, estou com raiva, com dor, tenho que aliviar isto. Abro minha bolsa, pego uma nota de cem, a inteirona que recebi hoje e enrolo. Cheiro a primeira fileira, depois a segunda. Decido que não posso ir pra terceira, minha garganta já está meio dormente, minha mandíbula está esquisita e...
Eu só queria morrer. É meu único maldito desejo, depois de 28 malditos anos de vida, só quero que acabe, que nunca cheguem os 29. Com coragem, com raiva, vou até o banheiro, o minúsculo banheiro e abro a gaveta. Tylenol, camisinha, remédio pra dormir. Vinte pílulas de remédio de dormir, mais quatro de tylenol... Fico pensando se isso me mataria. O que custa tentar? Se der errado, o problema é meu, se der certo, dificilmente vão notar. Só quando o apartamento começar a feder e os vizinhos sentirem cheiro de carniça.
Pego os remédios e volto pra cozinha, procuro uma garrafa de vodka ou qualquer coisa que me obrigue a engolir a porcaria toda. Encontro uma cachaça vagabunda, comprei no bar da esquina, mas quebra o galho. Engulo uns cinco comprimidos de uma só vez, com um gole de cachaça guela abaixo. Dói, tudo dói, corpo e alma, músculos e ossos, coração, estômago, nariz, mandíbula. Mais comprimidos guela abaixo, mais cachaça, mais comprimidos.
Já tomei todos. A garrafa está na metade. Estou me sentindo meio tonta... isso é um bom sinal, muito, muito bom, significa que estou morrendo, indo embora pra sempre, falar com meu amigo Diabo.
Deito no sofá, fecho os olhos e sorrio. Sorrio de pura felicidade, por que finalmente tive coragem de acabar com a minha vida, e agora acabou. O dia de amanhã não vai existir, e isso é um alívio, um alívio enorme. Minha visão fica escura, minha cabeça dói, minhas mãos estão tremendo. Quanto tempo já se passou? Meia hora, cinco minutos, um dia? Sinto algo voltando pela minha garganta, mas não consigo ver o que, apenas sinto uma gosma quente em meus peitos, lambuzando, sinto meu nariz úmido e quente, escorrendo um liquido. Sangue? Outro bom sinal. Estou morrendo. Adeus, vida.
Na morte, vejo a luz, vejo a escuridão desaparecendo abaixo de mim, não tenho mais corpo. Não tenho mais medo, não há mais dor em meu corpo.
Tenho nojo da existência, nojo dos humanos, dos animais, das vidas miseráveis, da inveja, da violência, da ganância. Nojo, simples e puro asco que me consome, que me fez beber a própria morte naquela garrafa de cachaça.
É um final drástico, por que o mundo é drástico e eu quero, pelo menos uma vez, ser como ele, ser dramático e estúpido, ser egoísta, ser mesquinho.
Odeio você, Mundo. Espero que você exploda, espero que tudo que você consome te destrua, que todas as pessoas na sua superfície te destruam. Apenas isso e nada mais.
Ouça o que eu digo, mundo: Você vai morrer logo, logo.
Exatamente como eu.

O sol começava a se por, lançando raios alaranjados em todas as casas da vizinhança. Apoiei os cotovelos na janela e apenas olhei – olhei sem realmente ver, porém sentindo tudo o que alguém no meu estado poderia sentir. Então ergui minha perna e a passei para o outro lado, meu pé pisando no telhado encardido de minha velha casa. Naquele momento, exatamente uma metade de meu corpo estava livre, enquanto a outra estava presa no interior de meu quarto. Naquele momento eu senti a dor da decisão. E naquele momento eu decidi.
Passei a outra perna e caminhei lentamente até o meio do telhado, equilibrando-me com facilidade. Respirei o ar fresco, fechei meus olhos e sentei-me. Eu estava livre. Eu senti, finalmente, que não precisava fugir para ser livre e feliz, por que eu tinha tudo ali, naquele telhado, olhando o por do sol. E, Deus, eu estava viva, com saúde, e podia ver o sol se pondo. E apenas isso, com toda a sua mera simplicidade, fez com que eu sorrisse.
E eu agradeci do fundo do meu coração.


E se Deus, o ser que nos tira a vida, for o diabo?
Afinal, ele tira a vida.
E se ele se alimenta de sangue, e precisa de corpos para sobreviver? Milhões de corpos ao dia, milhões de almas.
Alimenta-se de alma, talvez. O perispírito, o contorno da alma, o que nos liga ao corpo, pode ser o alimento de Deus.
Deus pode ser mal, pode neste momento estar caçando alguma alma para se alimentar, ao lado de Jesus e do anjo Gabriel.
Nunca se sabe.